Tânia
T. Nakamura e Lúcio E. do E. S. Júnior (*)
Na cidade de Bom Despacho temos uma comunidade de
afro-descendentes, no Bairro Tabatinga, onde reside
Maria Joaquina da Silva, conhecida como “Fiotinha”,
última falante de uma língua (predominantemente banto)
que funcionava como espécie de código secreto para
preservação de troca de informações entre o grupo.
“Fiotinha”
teve um papel destacado na preservação da “gira” da
Tabatinga ao dar depoimentos a Sônia Queiroz, professora
de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da UFMG,
mestre em Letras pela mesma Universidade e doutora
pela PUC/São Paulo, natural de Bom Despacho, quando
da realização de sua obra “Pé Preto no Barro Branco”,
que aborda a constituição da Língua do Negro da Costa.
O projeto tem
como sua idealizadora principal a própria “Fiotinha”,
que com o objetivo de preservar a cultura local, quis
criar uma escola em que se ensinasse a língua da Tabatinga.
Assim iniciamos
uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação
de Bom Despacho e comunidade local, os trabalhos em
duas frentes que interagiram: 1ª -
Alfabetização de adultos, pois
“Fiotinha” é analfabeta e manifestou grande
desejo em aprender a ler , também em reunião informal
feita no bairro foi levantado um número significativo
de analfabetos no bairro; 2º: Conversação na língua
da Tabatinga.
Consideramos este trabalho pioneiro
no que se refere a uma sala de conversação em língua
de afro-descendentes e de suma importância para a
preservação da cultura negra local, como também com
uma grande viabilidade dentro da pesquisa em História
Oral, definida aqui com beleza por Fiotinha: “Não
tenho a letra, só tenho a palavra”.
Importante destacarmos a co-orientação
da professora Sônia Queiroz, que atualmente é docente
na Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade
de Letras, Departamento de Línguas Vernáculas, que
nos possibilitará um apoio fundamental no decorrer da pesquisa.
Observamos
que o apoio e preservação de determinadas manifestações
culturais tradicionais têm se tornado uma bandeira
na busca da identidade de certas comunidades, em meio
ao fenômeno que chamamos de “globalização”, que tem
se mostrado homogeneizador e massificante, principalmente
por atuar diluindo as diferenças. A busca da
identidade e o respeito ao diferente serão o núcleo
do nosso projeto aqui apresentado.
Maria Joaquina da Silva, “Fiotinha”, a grande mentora do projeto que aqui apresentamos.
Filha de um dos falantes mais antigos da Língua do
Negro da Costa, chamado Zé Caria (ou Zacaria) e Joaquina
Caria. Teve apenas um irmão chamado Zé Baiano. “Fiotinha”
teve seis filhos e seis netos e Zé Baiano, dois filhos
e seis netos.
Como aponta QUEIROZ (1998), trata-se
de uma comunidade historicamente “excluída” até na
geografia, como sendo “um bairro de negros” , ironicamente
construída numa cidade que foi fundada sobre uma área
de quilombos destruídos:
Os quilombos
são, pois, fator importante no povoamento da região
de Bom Despacho: os negros, fugindo aos seus senhores,
entram pelo sertão em busca de esconderijos onde se
organizar como homens livres. Atrás deles vão os capitães-de-mato,
que muitas vezes encontram pelo caminho lugares atraentes
onde resolveram fixar residência”
(QUEIROZ, 1998: 38)
Tendo em vista em nossa pesquisa a história
de vida de “Fiotinha” o diálogo com as fontes orais fornece ao seu
trabalho um posicionamento diante do estatuto do conhecimento
histórico. A construção da memória pela sua formação,
manutenção e elaboração das identidades individuais
e coletivas, veiculada pela oralidade, expressa as
várias faces da experiência
humana ao longo do processo histórico, estabelecendo
relações e mediações com outros tipos de registro
do real, acrescentando
segundo GATTAZ
(1988) que:
Os aspectos
individuais, na história de vida, são exacerbados,
enquanto os movimentos gerais da História assumem
em geral um plano secundário, e isso faz com que a
nossa abordagem destes testemunhos seja diferente
daquela que daríamos a uma série estatística ou um
relatório governamental. Neste sentido, distingue-se
a história oral de vida, preocupada com a experiência
subjetiva, da história oral temática, voltada ao fato
objetivo e à reconstrução de um passado ignorado.
Na história de vida, a verdade dos fatos se subordina
à verdade do homem, pois é o homem que está em questão (GATTAZ, 1988: 877)
A história de vida de “Fiotinha” está sendo captada por
nós através de entrevistas onde:
A
gravação da entrevista entre o oralista e o colaborador
cristaliza uma manifestação histórica. Sua análise,
portanto, deve considerá-la como uma forma expressiva
determinada pelo espaço e pelo tempo, refletindo não
o sentido que o narrador teve dos fatos no passado,
mas aquele que lhe ocorre no momento da entrevista
– e não de forma inocente ou inconseqüente, como notam
alguns estudiosos (GATTAZ, 1998:883).
A
parte propriamente pedagógica, o processo de alfabetização,
foi por nós desenvolvida a partir de temas, os quais
serão extraídos da própria realidade dos alunos.
Nossa
vivência com a “gira” da Tabatinga e a figura de Fiota
aconteceu, digamos, em parte devido à nossa experiência
de termos saído de pequenas cidades do interior e
agora termos retornado, acompanhando a tendência de
expansão para o interior das instituições de ensino
superior.
Bom Despacho, nossa cidade, situa-se no centro-oeste de
Minas Gerais, estado repleto de cidades históricas
e tradições. No entanto, nossa comunidade não tem
mitos como Xica da Silva, que se projetou nacionalmente
e ganhou eco com livros como Rei
Branco Rainha Negra, de Paulo Amador, e até um
filme de sucesso, Xica da Silva, de Cacá Diegues nem grandes
vultos históricos como Juscelino Kubitschek. No entanto,
a cultura popular da cidade preserva singularidades
bem pouco estudadas ou valorizadas.
Uma delas é a “gíria” da Tabatinga. Corre por toda a cidade
que existe esse vocabulário, muitos conhecem uma ou
outra palavra, verifica-se interesse, mas trata-se
de algo anedótico e intermitente. Uma clínica veterinária
e uma cooperativa utilizam palavras como cambuá (cachorro)
e mavero (leite) sem que se saiba do conhecimento
que os donos das empresas e seus usuários possuem
dessa “gira”.
Primeiramente tínhamos ouvido falar da “gira” e lido o livro
de Sônia Queiroz, Pé
Preto no Barro Branco. A seguir, tivemos contato
com Fiota, tida pela comunidade como última falante
autêntica da língua. Transcrevemos a seguir trecho
de uma de nossas entrevistas com D. Fiota:
Lúcio: Como era com seu pai, sua mãe, sua família? Você falou
com a Brigitte que aqui era tudo mato?
Fiota: Meu pai era baiano, vivia andando pelo mundo. Minha mãe
estava trabalhando no tempo da escravidão, no tempo
do cativeiro. Ele foi passano e acenou para ela. Ela
foi e perguntou se ela não arrumava um serviço para
ele. O patrão falou: aqui só tem ranca de mandioca.
Ele foi e deu ele o serviço. E nesse tempo ela era
sortera. Aí ele foi namorano, namorano. Ele resolveu
pedir a mão dela em casamento. Ela falou: não, não
pede agora não, minha mãe é muito nervosa. Aí pediu,
foi aceito, eles arrumaro e casô. Logo quando ês casô,
ela contava para mim que ele falô: “Eu sei duma cultura
que é a mió coisa do mundo, e vou te ensinar ocês
uma cultura, que quando a gente tiver famia, isso
vai ser muito bom procês”. Quando nós nascemo, ela
falou, vou ensinar para vocês uma cultura que seu
pai deixou para vocês. Eu falei: muito custosa? Ela
falou: não. Ela estava sentada fiando fio de algodão
e ia dizendo, vamo hoje na linguagem, foi explicar
a você cumé que é. E aí ela foi contando para mim
o jeito que ela explicou para ela. Meu irmão falou:
vamos brincá. Ele falou: não, não vô aprendê não.
E eu aprendi, e hoje sou muito percurada, recebo todo
mundo de braços abertos, gosto muito do jeito que
ês me trata, agora tô até no salão [da Igreja Católica].
Agradeço muito ao Simão, que abriu a mão para mim.
Ao Beto, Beto me deu a maior força, maior apoio.
Eu
falo para todo mundo quarqué hora a língua da gira.
Ela começou assim: quando minha mãe tava lá, ele
falava: cafingueiro caxô. Patrão chegava, eles
falavam: catingueiro caxô. Caxô o quê? No curima.
Ela tava querendo dizer que o patrão chegou. Essas
tinham que tirar uma tarefa. Comia mandioca e achava
que era um almoço muito bacana. A gente não pode falar
o nome do trem. Não tem assango? Não, não tem assango
não. Tem cambelera, não, cambelera também não caxô
não. Quando rebentô a liberdade, minha mãe saiu lá
Engenho do Ribeiro caçando um lugá. Isso aqui tudo
era mato. Nós foi luitá para fazer uma barraca de
lona. Nós fizemo, entramo. A barraca acabou, nós fizemos
a piteira. Nossa casa era coberta de “apita” ao redor.
A coberta era apita. Não tinha jeito de buscar água
mais perto, buscar água era lá no chacrinha. A gente
pegava a pineira e coava, tirava barro. Nós tirava
barro era no meio do garimpo aqui. Nós entrava dum
lado e saída do outro. Nós ia com as enxada atrás
tirando a terra. Nós custô demais fazer um cômodo
barreado mas nós fizemo, e aí o povo, todo mundo foi
fazendo. Nós amassava era de pé,o barro. Não tinha
amassador de barro, não tinha cavalo... Foi aonde
que cresceu esse bairro tão maravilhoso. Só uma coisa
eu quero, quero ver se dou conta de chegar lá. Quero
tirá esse nome que botaram aqui, Ana Rosa. Pô o nome
que era. O nome Tabatinga foi minha mãe que colocou
aqui. Na subida era um barro branquinho. Não tinha
carro automóvel, era carro de boi. Toda vida foi Tabatinga.
Desde o tempo da escravidão. Aí mandou por Ana Rosa.
Se Deus quiser, quero tirar Tabatinga e pôs Ana Rosa.
Pode parar por aqui ou cês qué mais?
Aqui
no bairro é muito difícil quem fala a língua. Uma
das pena que ficou de resto que pode contá foi só
eu. Tem muita gente que grita aí só aquelas paiaçada
de cuete ocora, cuete cafuvira, mas não interessa
pelo bairro. O que vem a ser cuete ocora? (Pausa).
Lúcio: Ah,
cuete ocara é preto.
Fiota:
preto. Hoje quem falá do preto, acho que agora o viriango
caxa, né? Eu não vou retacar ninguém por causa da
minha cor.
Tânia (rindo): É, o viriango caxa.
Lúcio: Como
foi o trabalho do livro da Sônia?
Fiota: O pai dela foi o melhor médico que nós encontramo aqui
em Minas. Ele dava os remédio de graça, dava consulta
de graça. Eu devia muita obrigação ao pai dela. Ela
me disse: quero aprender a língua da Tabatinga. Ficô
umas coisa no livro que ela não“intrerpretou” bem
não. Demorô uns quinze ano. No livro ficô umas coisas,
ela aproximô. Tem muita coisa para a gente falá e
induzi. Não sei se é porque ela tava nervosa. Eu quero
agora fazê um outro livro com a Tânia.
Tânia: A gente chega lá (....).
Fiota: Eles fala que se eu continuá falando, todo mundo vai sabê
e eu num vô sê percurada mais. Mas eles tem que aprendé
que vai sê uma cultura boa para eles.
Devemos então notar o seguinte: Fiota fala
de marcas, ou melhor, certas marcas falam nela. Uma
é a dura história dos negros após o cativeiro. Notamos
que Fiota referiu-se à vida de sua mãe, fundadora
do bairro da Tabatinga onde atualmente ela mora, demonstrando
saber que sua história começou antes de seu nascimento,
com a história de seus pais. O “dialeto” da Tabatinga
foi uma herança paterna, quem sabe a única. A mãe
foi a responsável pela transmissão para a criança
da língua herdada do pai. É curioso observar que o
filho do sexo masculino negou a língua do pai, acolhida
carinhosamente apenas pela filha. Fiota, apesar das
dificuldades para garantir a sobrevivência e o analfabetismo,
observou certo avanço histórico (“Hoje quem falar
do preto, acho que o viriango caxa, né?” O que quer
dizer: “Hoje quem falar do preto, acho que o policial
prende, né?”) e permaneceu firme no desejo de recuperar
a parte de suas tradições que foi apagada, no caso,
o próprio nome do bairro, Tabatinga, substituído por
Ana Rosa. O nome se reveste de uma importância que
ressoou mesmo no livro já realizado sobre o bairro,
de autoria de Sônia Queiroz: o título “Pé Preto no
Barro Branco” é uma referência, ao mesmo tempo, ao
barro existente na principal rua do atual bairro,
amassado como o pé para fazer casebres, e à “gíria”
em si, que se utiliza da língua portuguesa para inserir
termos de origem africana, dando a entender, em sua
própria estrutura, a presença da mestiçagem.
Chamamos a atenção também para outro dado,
presente indiretamente na fala de D. Fiota: muitos
repetem palavras na língua (“cuete ocora” e “cuete
cafuvira”, sinônimos de “negro”) mas não se interessam
pelo bairro. A discriminação e o preconceitos com
relação aos falantes da “língua do negro da costa”
foi algo também sentido por nós no decorrer de nosso
contato.
Após nossa aproximação, realizamos o desejo
de D. Fiota e obtivemos espaço no salão da Igreja
Católica para a realização de um curso de alfabetização,
contando também com o apoio da prefeitura na figura
do secretário de educação, Carlos Alberto, que nos
cedeu lápis e cadernos, além de contratar como professora
a então voluntária da Igreja Católica Maria Marilac.
A professora, já com experiência de alfabetização
em escolas da rede pública, teve também sua primeira
experiência com alfabetização de adultos nesta ocasião.
Após as aulas, algumas vezes reunimos os alunos para
uma conversação na “gira”, por vezes acompanhada de
cafezinho e bolo. Com freqüência o tema discutido
foi a língua da Tabatinga. Após a desistência de alguns
membros da comunidade, verificamos que existiam alunos
interessados na alfabetização, mas que resistiam à
língua da Tabatinga, tida por esses desistentes como
“bobagem” e “coisa de vagabundos, malandros”. O motivo
seria que, por fornecer um código de difícil decodificação
para aqueles situados fora da comunidade, a “gira”
despertou desconfiança. Porém, desmistificando o preconceito
que envolve os falantes da língua, Sônia Queiroz mostrou
em seu livro que a maior parte da população do bairro
constitui-se de trabalhadores.
Decididos a contrariar o preconceito e a baixa auto-estima
encontrados em certos círculos da comunidade, resolvemos
orientar a professora Marilac a inserir palavras na
língua da Tabatinga no decorrer das aulas. Isso nos
pareceu altamente recomendável, por ligar-se, inclusive,
à pedagogia ensinada por Paulo Freire, pedagogia essa
em que algumas palavras, obtidas no contexto da comunidade,
seriam “palavras geradoras”. No caso, as a palavras
geradoras foram “ingura” (dinheiro), “assango” (arroz)
e “cuete” (homem). Verificamos que a iniciativa obteve
aceitação por parte do pequeno grupo de alunos.
Outra experiência que realizamos, paralelamente à alfabetização,
foram as entrevistas tais como a citada acima. Promovemos
também o seguinte diálogo: Brigitte, professora de
francês de origem afro-belga e que ensina de francês
na cidade, tentou conversar com Fiota e comparar algumas
palavras nos dialetos africanos que sabe, sendo esses
o swahili e um dialeto originário do Zaire. Não observamos coincidência
entre os termos falados por Fiota e aqueles utilizados
por Brigitte, mas o encontro resultou numa conversa
animada e simpática, e, de certa forma, ao receber
em sua casa uma pessoa que já esteve na África, fala
suas línguas e conhece suas realidades, Fiota pode
reencontrar-se um pouco com suas raízes.
No decorrer dessas nossas vivências com a comunidade
e com a Língua do Negro da Costa, gostaríamos de anotar
algumas produções culturais ligadas ao bairro, mas
que ainda permanecem pouco conhecidas. O livro “Madrinha”,
um pequeno livro de contos também autoria de Sônia
Queiroz, trouxe uma personagem negra também chamada
Fiota:
_Eu aqui sô chefe de turma. Os cavinguero
passa no meu conjolo e vai só tipurano: Ô Fiota! Ruma
aí uns vinte home e muié pra prantá mio lá para mim.
Eu rumo. Se fô bão de ingura, se a ingura fô avura,
eu caxo. Caxo os cuete dos conjolo e nóis caxamo tudo
pro sengue. Pegamos injira do cavinguero, prantá pungue,
tipoque, missango, quarqué embondo. Agora, se o cavinguero
fô ruim de ingura, ingura catita, num vai dá não,
né, cuete? Mió ficá no meu conjolo caxano urunanga
na omenha, mió que i pro curimba sem ingura. (Eu
aqui sô chefe de turma. Os patrões passa na minha
casa e vai só olhando. Ô Fiota! Ruma aí uns vinte
home e muié pra prantá mio lá para mim. Eu rumo. Se
for bom de dinheiro, se o dinheiro for bom, eu arranjo.
Pego os rapazes das casa e entramos no mato. Pegamos
o caminho do trabalho para o fazendeiro, prantá milho,
feijão, arroz, qualquer coisa. Agora, se o patrão
for ruim de dinheiro, dinheiro bom, não vai dar não,
né cara? Melhor ficar em casa secando roupa na chuva
do que trabalhar sem dinheiro). (QUEIROZ, 1987, p. 21)
Além desse uso ficcional do “dialeto” da Tabatinga, ficamos
sabendo também de uma composição de autoria de Ronniere
Menezes, professor, mestre em Letras e funcionário
público da ASLEMG, cuja letra utiliza termos da língua
da Tabatinga, tais como, por exemplo: “O cuete avura
comemora a abolição da escravatura (algo como: ‘O
belo rapaz comemora a abolição da escravatura’)”.
Não pudemos obter, devido ao curto prazo que tivemos,
devido às nossas atividades como professores, nem
a letra na íntegra nem o depoimento do referido autor.
Nesta altura de nosso trabalho, após o relato
de nossas experiências e de nos referirmos à bibliografia e produções ligadas
à língua, passemos à questão da oralidade. A “gira”
da Tabatinga é um exemplo de herança cultural passada
oralmente. Os negros da Tabatinga permaneceram na
“oralidade primária”, que segundo Walter Ong, seria:
A oralidade de uma cultura totalmente desprovida
de qualquer conhecimento da escrita ou da impressão.
É “primária” por oposição à “oralidade secundária”
da atual cultura de alta tecnologia, na qual uma nova
oralidade é alimentada pelo telefone, pelo rádio,
pela televisão ou por outros dispositivos eletrônicos,
cuja existência e funcionamento dependem da escrita
e da impressão. Atualmente, a cultura oral primária,
no sentido estrito, praticamente não existe, uma vez
que todas as culturas têm conhecimento da escrita
e sofreram alguns de seus efeitos. Contudo, em diferentes
graus, muitas culturas e subculturas, até mesmo num
meio de alta tecnologia, preservam muito da estrutura
mental da oralidade primária.
Curiosamente, podemos dizer que a “oralidade primária” da
língua da Tabatinga é um desses raros casos referidos
acima. Trata-se de um caso em que palavras de origem
africana foram passadas adiante durante gerações,
e estão, diante de nós, vivendo sua ainda muito recente
aparição na esfera da escrita e da leitura.
Ressaltemos que essas palavras trazem consigo uma história.
Elas falam da resistência africana, apesar da violência,
da marginalização, dos massacres dos resistentes nos
quilombos. A presença da Língua do Negro da Costa
em Bom Despacho subverte toda a história oficial da
cidade, história essa que explicou que Bom Despacho
foi fundada por três portugueses que fizeram uma promessa
à chamada Nossa Senhora do Bom Despacho ou Nossa Senhora
do Sol ao chegarem a uma das três colinas que constituem,
ainda, o núcleo da cidade. A presença da “gira” da
Tabatinga mostrou-nos que, antes de ser habitada por
brancos portugueses, a região foi refúgio de negros
fugidos das regiões de mineração situadas próximo
a Belo Horizonte e Pitangui. Portanto, a “língua”
seria um indício decisivo de que a cidade foi primeiramente
um quilombo. Aliás, vale a pena frisar que a presença
dos negros fugidos, neste período, motivou a chegada
dos brancos portugueses, muitos dos quais, tendo vindo
no encalço dos quilombolas, resolveram, permanecer
na região.
Trata-se de
um exemplo de uma “língua” oral transmitindo palavras
que minam, arruínam, põem abaixo uma versão que claramente
foi a dos vencedores e a chamada história oficial.
O mesmo recalque ou superposição da história das vítimas
pelo nome dos mais poderosos verificou-se estar em
ação ainda hoje, ao lembrarmos da entrevista acima:
Fiota demonstrou estar sentida com a troca do nome
“Tabatinga”, (que lembra a ela a luta de sua mãe,
ex-escrava, junto aos pioneiros que construíram o
bairro), pelo outro, “Ana Rosa”, nome de uma granja
situada na região, ou, acrescentemos, “Nestlé”, nome
da multinacional fabricante de chocolates, adotado
por alguns do bairro, julgando que assim poderiam
ficar livres da conotação pejorativa que tomou o termo
“Tabatinga”, ou seja, que se veriam livres de sua
própria história. Ora, mesmo um rico herdeiro de um
milionário poderia entregar a outrem todos os seus
bens, fazer voto de pobreza, mas não ficaria livre
de sua história. Podemos perder todos nossos bens,
trocar de nome ou de identidade, mas mesmo assim não
deixamos de ter uma história, ainda que negada ou
silenciada.
(*)
= professores da Unipac
Bom Despacho
Contato com os professores:
Tânia - tania@
Lúcio - lucio@bdonline.com.br