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Experiência
do projeto Minas Afro-descendente comprova o poder da
língua em unir culturas separadas pela escravidão
Maurício Guilherme Silva Jr.
Sexta-feira, 13 de agosto. Quase lua nova em Bom Despacho,
município do oeste mineiro. Em sua pequena casa
na Tabatinga, bairro tradicional da cidade, dona Maria
Joaquina da Silva, a Fiota, prepara-se para dormir.
Tudo corre em sua aparente normalidade cotidiana, até
que a noite proporciona-lhe um surpreendente encontro.
Por volta das 21 horas, a moradora recebe três
ilustres visitantes, com quem a mera troca de palavras
faz com que dona Fiota reavive séculos da história
de seus antepassados.
Remanescente de uma das duas famílias* de Bom
Despacho detentoras da tradição lingüístico-cultural
africana, Maria Joaquina conversou com seu Crispim e
seu Ivo, cantadores de vissungos _ cantos afro-brasileiros
_ de Milho Verde, e com o estudante angolano da UFMG,
Amadeu Chitacumula. Depois de se cumprimentarem em português,
dona Fiota pronunciou frases no dialeto que aprendera
com a mãe: a língua do Negro da Costa
ou da Tabatinga.
A cada expressão ou palavra dita pela anfitriã,
seus convidados não disfarçavam a emoção.
Apesar de nascidos em terras distantes da pequena Bom
Despacho, Ivo, Crispim e o jovem estudante angolano
entendiam tudo o que dona Fiota dizia. Enquanto os cantadores
sorriam surpresos, Amadeu Chitacumula traduzia etmologicamente
a origem das expressões de Maria Joaquina e comparava
determinadas pronúncias com dois dos dialetos
angolanos: o quimbundo e o umbundo.
O encontro dos representantes da cultura afro-brasileira
aconteceu em Bom Despacho por causa do evento Minas
afro-descendente - Uma experiência de revitalização
de remanescentes de línguas africanas em Minas
Gerais, fruto de projeto da Faculdade de Letras da UFMG,
coordenado pela professora Sônia Queiroz (leia
entrevista ao lado), que busca revitalizar as línguas
africanas faladas no Brasil. No dia seguinte ao encontro
de dona Fiota com seus novos amigos, a cidade mineira
seria palco de uma série de atividades artísticas
e folclóricas
Origens
A língua da Tabatinga, que Dona Fiota apresentou
a seus visitantes, mistura o português rural do
Brasil-Colônia a línguas de grupos Banto
– com predomínio do quimbundo e do umbundo
–, faladas até hoje em Angola. Segundo
a professora Sônia Queiroz, a formação
de dialetos em solo brasileiro resulta da necessidade
de sobrevivência dos escravos. À época,
os senhores misturavam, propositadamente, nas senzalas,
negros vindos de pontos diferentes da África.
Como não conseguiam se comunicar, precisaram
desenvolver um dialeto próprio, que lhes servia
de instrumento para o diálogo e, ao mesmo tempo,
de afronta aos patrões brancos.
Com relação ao surgimento da língua
falada por clãs afro-brasileiros de Bom Despacho,
a professora Sônia Queiroz, no livro Pé
preto no barro branco: a língua dos negros da
Tabatinga, remete ao ciclo da mineração.
Segundo ela, os escravos que ali chegaram teriam vindo
de Pitangui, uma das vilas do ouro, bem mais antiga
que Bom Despacho. “Quando as minas de Pitangui
começam a escassear, os habitantes da região
migram para outras áreas do oeste mineiro. O
processo culmina com o desenvolvimento de fazendas de
gado, onde trabalhavam os negros que formaram as famílias
da Tabatinga”, explica a pesquisadora. Quando
passam a realizar serviços domésticos
no interior da casa de seus senhores, os escravos agregam
estruturas do português à língua
criada nas senzalas.
* Em 1981, havia em Bom Despacho 207 falantes da chamada
Língua do Negro da Costa _ ou Língua da
Tabatinga _ pertencentes a duas famílias do município.
Passados mais de 20 anos, a professora Sônia Queiróz
identificou em suas pesquisas apenas duas mulheres da
comunidade. Delas, apenas Maria Joaquina da Silva fala
a língua afro-brasileira. O idioma é composto
por um português rural do Brasil-Colônia
e por línguas do grupo Banto, com predomínio
do quimbundo e umbundo, faladas até hoje em Angola.
Minha pátria é minha língua
Realizado no adro da capela da Cruz do Monte, no dia
14 de agosto, na comunidade da Tabatinga, o evento Minas
Afro-descendente buscou reforçar a identidade
dos afro-descendentes que vivem em Minas Gerais, por
meio do reconhecimento do valor de suas tradições
lingüísticas e culturais. Pretendeu, ainda,
valorizar a mistura de etnias – raças,
cores, línguas, estilos de vida – que caracteriza
a riqueza da cultura rasileira.
O evento reuniu diversas vertentes afro-brasileiras.
Logo às 10 horas, dezenas de moradores assistiram
à chegada dos ternos do reinado de Nossa Senhora
do Rosário, grupos compostos por homens e mulheres
devidamente paramentados com cores de sua comunidade,
que dançam ao ritmo de tambores, sanfonas, e
seguram bandeiras com homenagens aos santos de devoção.
Em seguida à passagem dos ternos, o estudante
Amadeu Chitacumula e outros quatro estudantes angolanos
da UFMG mostraram aos participantes a força da
musicalidade africana. Integrantes do grupo Dikanza
– termo que, em quimbundo, é representativo
de instrumentos musicais –, eles apresentaram,
à capela, canções de sua terra
natal. Vindos de diversas partes de Angola, Chitacumula
e seus companheiros estão há alguns anos
longe de seu país. O português é
a língua oficial dos estudantes, mas são
os dialetos que denunciam sua origem, num processo que
pode ser resumido pela expressão Ofexa yange
elimi liange, (Minha pátria é minha língua).
Outra atração do evento foi o grupo belo-horizontino
Tambolelê, que apresentou, ao lado dos cantadores
de vissungos de Milho Verde, o espetáculo Macuco
Canengue. “Foi uma honra nos apresentarmos ao
lado de dois mestres. Afinal, há anos trabalhamos
com a difusão da cultura afro-mineira”,
diz o músico Sérgio Pererê, um dos
integrantes do Tambolelê. Seu Ivo e seu Crispim
explicam que os vissungos são cantos entoados
pelos negros durante a lida diária e nos cortejos
fúnebres. “Quando morre uma pessoa, rezamos
o ofício e entoamos cantos sagrados”, afirma
seu Crispim. Atualmente, a tradição foi
deixada de lado na região em que moram nas proximidades
de Diamantina. A expressão artística do
canto, no entanto, permanece viva.
Fonte: Boletim Informativo da UFMG
http://www.ufmg.br/boletim/bol1451/quarta.shtml
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cidade de Bom Despacho/MG.
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Localização
da Comunidade |
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Tabatinga em Bom Despacho / MG
Associação Quilombola
A pretensão da Associação
dos Quilombolas de Bom Despacho é a de iniciar
seus trabalhos de filiação, divulgação
e possíveis parcerias para a difusão e
implantação dos projetos ligados às
causas da mesmo o mais rápido possível.
Telefone de contato: (37)3522-3324
Endereço: R. Tabatinga. 520, bairro
Ana Rosa,no município de Bom Despacho/MG |
Língua
(Gíria) da Tabatinga |
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A gira (língua,
gíria)da Tabatinga é uma língua
afro-brasileira, de origem predominantemente banto.
Em extinção, é falada em parte
do município brasileiro de Bom Despacho.
fonte: Wikipedia |
Dona
Fiota: A letra e a palavra |
Texto de: José Ribamar Bessa freire
Dona Fiota. Ela é dona Fiota e pronto. Ninguém
a conhece pelo nome de Maria Joaquina da Silva. Mas
também quem é que chama
Tiradentes de Joaquim José da Silva? Basta uma
única conversa para perceber que dona Fiota é
uma mulher poderosa, um personagem da história
do nosso país. Tive o privilégio de ouvi-la
em março de 2006, em Brasília, durante
o seminário sobre as línguas faladas no
Brasil, organizado pela Comissão de Educação
e Cultura da Câmara dos Deputados e pelo IPHAN.
Com seu charme e sua inteligência, ela cativou
a todos.
Dona Fiota contou, naquele seminário, que seu
pai era um baiano que vivia andando pelo mundo, no tempo
do final da escravidão, que ele passou pelo centro-oeste
de Minas Gerais, que foi passando e viu sua mãe
no cativeiro trabalhando, fiando fio de algodão,
que acenou para ela e perguntou se não arrumava
uma ocupação para ele, que acabou conseguindo
um serviço na roça de mandioca, que foi
ficando e namorando, ficando e namorando, até
que os dois se casaram, tiveram filhos, netos, bisnetos.
Os descendentes do andarilho baiano com a ex-escrava
se organizaram depois de abolida a escravidão:
“Quando rebentou a liberdade, minha mãe
saiu lá de Engenho do Ribeiro caçando
um lugar. Chegou aqui. Tudo era mato. Na subida, havia
um barro branquinho. Ai foi minha mãe que deu
o nome de Tabatinga. Toda vida foi Tabatinga. Desde
o tempo da escravidão. Só agora é
que o nome mudou pra Ana Rosa. Quero tirar esse nome
de Ana Rosa”.
A história da comunidade Tabatinga - hoje uma
área quilombola, situada no bairro Ana Rosa,
periferia da cidade de Bom Despacho (MG) - foi contada
por Dona Fiota aos participantes do seminário
do IPHAN, mas teve de ser traduzida, porque ela falou,
não em português, mas numa língua
afro-brasileira, de origem banto, chamada Gira da Tabatinga,
ainda hoje usada por um grupo de moradores. Foi a primeira
vez que o plenário da Câmara Federal ouviu
o som de uma língua minoritária de base
africana, reconhecendo sua riqueza, sua função
histórica e sua legitimidade.
A fala da senzala
A Gira da Tabatinga era falada nas antigas senzalas
das fazendas do interior de Minas Gerais. Com ela, os
escravos podiam se comunicar livremente sem o patrão
entender o que diziam. A língua libertava. Dona
Fiota conta: “A gente não podia falar o
nome do trem. Tem assango? Não, não tem
assango. Tem cambelera? Não, cambelera também
não. Tem caxô? Nada de caxô. Então,
minha mãe falava: ‘Catingueiro caxô.
Caxô o quê? No Curimã’. Ela
tava avisando que o patrão havia chegado”.
Numa entrevista a Lúcio Emílio, Dona Fiota
dá detalhes sobre a formação da
Gira da Tabatinga, produto do sincretismo de várias
línguas africanas misturadas ao português:
“Aprendi essa língua com a minha mãe.
Ela falava todo dia para mim até eu aprender.
Isso traz toda uma história pra gente, tanto
das partes alegres, como das tristes”. Recentemente,
os moradores perceberam que aquela língua que
os havia libertado, estava ameaçada de extinção,
porque não é mais usada por crianças
e jovens, diz dona Fiota: - “Aqui no bairro é
muito difícil quem fala a língua”.
Foi aí que a comunidade decidiu fortalecer na
sala de aula a língua denominada Gira da Tabatinga,
aproveitando a lei sancionada em 2003 que torna obrigatório
o ensino de História e Culturas afro-brasileiras
nas escolas de ensino fundamental e médio. Duas
pesquisadoras – Celeuta Batista Alves e Tânia
Maria T. Nakamura – acompanharam a luta pela revitalização
da língua, que no passado foi um poderoso instrumento
de resistência dos escravos e hoje é uma
marca da identidade de seus falantes.
A comunidade conseguiu a promessa de que a Secretaria
Municipal de Educação remuneraria uma
professora da Gíria da Tabatinga. A questão
era: - quem daria aulas? Os moradores não duvidaram:
- dona Fiota. Afinal, ela era o Aurélio, o Antônio
Houaiss daquela língua quilombola. Acontece que
após um mês de trabalho, quando foi receber,
o funcionário lhe disse:- “Ah, a professora
é a senhora? Então, não vou pagar.
Como justifico o pagamento a uma professora que é
analfabeta?”. Dona Fiota deu uma resposta de bate-pronto,
que só os sábios podem dar:
- Eu não tenho a letra. Eu tenho a palavra.
A dona da palavra
Com isso, derrubou a postura quase racista que discrimina
os que vivem no mundo da oralidade. Ensinou que existe
saber sem escrita; que na situação em
que ela, dona Fiota, se encontra, não precisa
da letra, porque usa a palavra para transmitir seus
saberes, trocar experiências e desenvolver suas
práticas sociais. Foi nessa língua de
forte tradição oral que ela criou e educou
seus filhos. É nela que hoje pensa, trabalha,
narra, canta, reza, ama, sonha, sofre, chora, reclama,
ri e se diverte. Dona Fiota deixou claro que não
é carente de escrita, como dizem alguns letrados.
Ela é independente da escrita.
Cerca de um milhão e meio de brasileiros para
quem o português não é a língua
materna estão, hoje, na situação
de dona Fiota. Falam uma das 210 línguas existentes
dentro do território nacional, 190 das quais
são línguas indígenas, ágrafas,
sem tradição escrita, mas que são
depositárias de sofisticados conhecimentos no
campo das chamadas etnociências, da técnica
e das manifestações artísticas.
- Esses cidadãos não são menos
brasileiros que os outros – defende o lingüista
Gilvan Muller, que além dos direitos das minorias,
chama a atenção para a diversidade cultural
e lingüística, tão importante para
o país e para a humanidade. Por isso, o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), atendendo encaminhamento do então
presidente da Comissão de Educação
e Cultura da Câmara dos Deputados, Carlos Abicalil,
organizou o seminário em 2006 para discutir como
proteger essas línguas e o rico patrimônio
intangível que elas representam.
Desse seminário participaram técnicos,
especialistas e falantes de diversas línguas,
entre as quais o Guarani, o Nheengatu, a Língua
de Sinais (Libras) e até uma variedade do alemão
falada no sul do Brasil chamada Hunsrückisch. Na
ocasião, foi criado um Grupo de Trabalho Interinstitucional,
formado por cinco ministérios, uma ONG e uma
entidade internacional, que produziu um relatório
sobre como registrar essas línguas e proteger
a diversidade lingüística do país.
Agora o relatório vai ser discutido. Nessa próxima
quinta-feira, 13 de dezembro, em Brasília, haverá
uma Audiência Pública da Diversidade Lingüística
do Brasil, organizada pela Comissão de Educação
da Câmara dos Deputados e pelo IPHAN. Tomara que
dona Fiota, a dona da palavra, esteja lá outra
vez. Em caso afirmativo, voltarei a ouvi-la e conto
tudo no próximo domingo.
Postado em 10/12/2007 ás 11:39 |
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