RETRATOS
NA PAREDE |
por
Pedro Rogério Moreira
Até
hoje provoca rumores, uns para cima (louvores) e outros para
baixo (maus humores) as palavras de Carlos Drummond de Andrade
no poema "Confidência do itabirano". No final
da década de 1930, escrevendo do Rio de Janeiro, onde
já residia, o poeta federal anunciou que a cidade em
que nasceu, e da qual estava distante fisicamente há
quase vinte anos, era apenas um retrato na parede. E como
lhe doía!
Não
há desdouro algum para aqueles que permanecem na terra
natal ouvir um sentimento expresso tão diretamente
por quem a deixou para trás, na caminhada natural em
busca de outros horizontes. Nem seria necessária a
tentativa de exegese do poema, se os mal-humorados soubessem
que aquele retrato que doía tanto na alma do poeta
estava emoldurado no mais acendrado amor telúrico.
Todos
nós que estamos longe de nossa pátria pequena
encontramos no coração mais facilidade em compreender
as chorosas/revoltosas/amorosas palavras de Drummond para
a Itabira que o viu nascer e que contribuiu espiritualmente
na formação de seu singular caráter de
cidadão, homem público e intelectual.
Se
posso dizer que faço meu o verso famoso de Drummond,
no sentido de revelar poeticamente o que sinto por Bom Despacho,
não é menos verdadeira a afirmativa de que a
mais bela cidade do Oeste de Minas não representa para
mim apenas um retrato na parede. Representa vários
retratos, alguns tirados pela máquina Kodak, sanfonada
(última moda!) do meu tio Erasmo Brandão Couto,
na paisagem edênica da Lagoa Verde; outros, registrados
pela câmara impessoal de José Pessoa, se não
me engano o único fotógrafo profissional daquele
imenso país de entre os rios Lambari e do Picão,
que vem a ser a minha mesopotâmia sentimental.
A
Lagoa Verde, por aquele tempo, era um "point" de
lazer no meio do cerrado ainda não tanto estorricado
pelas derrubadas dos paus de mato para a criminosa indústria
do carvão vegetal. A meninada deliciava-se com um piquenique
por aquelas paragens belíssimas, sob os auspícios
dos donos do lugar, dona Geny e o seu Carlito. Generosos,
eles faziam questão de dividir o tesouro da natureza
com toda a comunidade de Bom Despacho. A ocasião servia,
também, de passarela da elegância esportiva,
com as moças exibindo maiôs com babados, e os
rapazes, vistosos calções de banho de uma largura
de saia. Minha tia Jojó, carioca avançada, fazia
sucesso com uns óculos de gatinho. E se deixava fotografar
com um cigarro Hollywood por entre os dedos numa pose de vedete
na praia de Cannes.... Ingênuos retratos sociais de
um Brasil em mudança lenta e de uma Minas bucólica
mas já absorvendo os tiques da vida urbana, fixados
pela lente da sanfona Kodak do querido tio Erasmo, sempre
atualizado com as novidades da tecnologia.
Já
as fotografias do Zé Pessoa tinham outra feição.
Embora também retratassem o cotidiano social de Bom
Despacho, diria que sua lente enquadrava o universo oficial,
tradicional, conservador, naquilo que estes três termos
sociológicos representam de valores de grande dignidade.
A foto tirada por Pessoa, pendurada na minha sala de visita,
é a foto oficial de uma família e um instantâneo
de felicidade. Data talvez de 1951 ou 52. Todos olham fixamente
para a câmara de lente burocrática. Ninguém
mostra os dentes, mas há alegria em todos os rostos.
Ninguém precisa exibir os dentes para ser feliz, parece
ensinar o fotógrafo José Pessoa. A começar
pelo meu avô, o coletor federal Benigno Magnânimo
do Couto, e minha avó Luzia Brandão, de prendas
domésticas (pianista, florista, bordadeira, doceira,
cozinheira, quituteira e cidadã prestante no coral
da Matriz e na Obra de São Vicente de Paula), serenos
no clic de meio século atrás. Ao lado deles,
meus tios no vigor de uma mocidade otimista com o que vinha
pela frente. Na outra fileira, minhas jovens tias, belas e
dedicadas professoras. E na terceira fila, os netos, incluindo
um tal de Pedrim, de calças curtas e pernas lanhadas
de brincar no mato da Cadeia Velha e encardidas da poeira
da Praça da Matriz e da fuligem das oficinas da Rede
Mineira de Viação, onde gostava de apreciar
os operários consertando uma Maria Fumaça...
Fotógrafo
é também aquele que, não tendo uma câmara
fotográfica, tem a caneta ou o teclado do computador
e a vontade de fixar em palavras aquilo que transcende à
imagem. Este é o caso de Jacinto Guerra, que compôs
um punhado de retratos de homens e mulheres da boa grei bondespachense
e nos brinda com este amável livro.
Jacinto é um festejado escritor e homem público.
Ele atua nestes dois campos com a dedicação
do estudioso e um sincero desejo de servir. Sempre destaca
sua cidade natal como meta de seus importantes trabalhos literários
ou a serviço da comunidade, como quando desempenhou
o cargo de secretário de Cultura de Bom Despacho.
Será
para o leitor de alma aberta, como foi para mim, um prazer
correr os olhos pelos retratos fixados pelas mãos operosas
de Jacinto Guerra neste "Gente de Bom Despacho - Histórias
de quem bebe água da Biquinha". Fui um dos felizardos
que pode bebê-la. Tendo nascido em Belo Horizonte, escolhi
a Biquinha como cenário de minha infância feliz.
Muitos
dos meus entes queridos compõem a galeria dos retratados
por Jacinto Guerra. Apreciar seus perfis humanos é
realizar uma volta a um passado cada vez mais distante. É
ocasião propícia a reverenciarmos os que viveram
nesta Bom Despacho que quase não mais existe e que
fizeram alguma coisa pelos que vieram depois.
No
entanto, há os que não gostam de fazer essa
viagem, seja por ausência de sensibilidade ou por temer
sentir a dor tão falada pelo poeta da Itabira desfigurada
pela marcha do tempo ou pela insensatez do homem. Pois estes,
não vendo os retratos do fotógrafo Jacinto Guerra,
vão perder uma excelente viagem de jardineira ou de
Maria Fumaça...
Volto agora ao retrato na minha sala de visita, obra da lente
oficial de mestre Zé Pessoa: o menino Pedrim, pilantra
de marca maior, já não usa calça curta,
e, se recebe lanhadas, o vergão ferra na alma; a poeira
da Praça da Matriz, graças a Deus, foi varrida
para debaixo do asfalto. Infelizmente, o trem de ferro acabou.
Mas se o retrato na parede me dói, dói-me de
rir.
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Fotos
e Comentários |
Pedro
Rogério Moreira, jornalista e escritor, membro da Academia
Mineira de Letras, é autor dos livros "Bela noite
para voar" e "O almanaque do Pedrim - Diário
de um mineiro destrambelhado na Amazônia".
e-mail
para contato:
gracian@apis.com.br
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Comentário
de Ronaldo Cagiano sobre o livro GENTE DE BOM DESPACHO:
Na
opinião do escritor de Cataguazes, o livro dos que
bebem água da Biquinha ajuda a melhor compreender Minas
Gerais - e este país-continente, que é o Brasil
Gente de Bom Despacho - História viva de um povo
Mao-Tsé-Tung, João Paulo II, Luiz Inácio
Lula da Silva, Evita Perón, Madre Teresa de Calcutá,
JK, Fidel Castro e Lampião na memória dos bondespachenses
Ronaldo
Cagiano
De
Brasília
Dando
seqüência a um trabalho permanente de valorização
da cultura e do resgate histórico de Bom Despacho,
Jacinto Guerra brinda-nos com "Gente de Bom Despacho
- Histórias de quem bebe água da Biquinha "
, mais um cuidadoso trabalho de pesquisa e consulta abrangente
sobre a sua terra natal, que foi buscar em sua fonte genuina
- os entrevistados -, matéria e circunstância
para uma biografia coletiva.
As biografias, notadamente as dedicadas a personalidades célebres
do mundo político, social e cultural têm se constituído
em gênero literário, pois, em sua maioria, aprofundam
a vida dos enfocados sob uma perspectiva mais histórica
do que registro banal das excentricidades.
Cronista e autor de obras de pesquisa histórica e de
biografias, como o festejado "JK - Triunfo e Exílio:
um estadista brasileiro em Portugal " , em vias de reedição,
Jacinto Guerra adquiriu o verdadeiro "feeling" do
autêntico entrevistador, enriquecido pelas suas experiências
de magistério, de jornalismo - e nos cargos que ocupou,
tendo como respaldo sua trajetória literária.
Aliando o talento de cronista, com sua linguagem depurada,
cristalina e poética ao viés jornalístico,
faz da biografia um riquíssimo texto, em que estão
presentes referências interessantes do biografado, mantendo
interface com outros dados e detalhes, que contribuem para
informar o leitor, tornando a obra verdadeiro manancial de
cultura sobre assuntos de variado matiz.
Neste livro, o autor de O gato de Curitiba enfeixa uma obra
singular, por transcender o mero e frio relato biográfico,
inscrevendo-se como repositório da memória social,
política e econômica de Bom Despacho e região,
na fala, na lembrança, nas reminiscências, nas
curiosidades e dados oferecidos pela farta biografia de quem
construiu o passado, faz o presente e projeta o futuro de
uma cidade marcada pelo progresso nos diversos setores. São
relatos que colocam a cidade como centro irradiador da história.
Comparecem nessa obra, desde pessoas comuns às autoridades
; de personalidades que dirigem politicamente o destino local
aos que emprestam mãos, braços e inteligência
para erguer o edifício social e humano de uma comunidade.
Estão aqui prefeitos, vereadores, professores, comerciantes,
lavradores, industriais, magistrados, donas de casa, filantropos,
estudantes, religiosos. Enfim, a presença eclética,
democrática e plural de uma cidade repleta de histórias
instigantes, resgatadas em depoimentos candentes e emocionados
e que, apesar da diversidade dos registros, guarda uma unidade
de estilo, sempre levando em consideração o
valor intrínseco das relações provinciais,
dentro daquela perspectiva de Tolstoi, segundo a qual, para
sermos universais, temos que cantar o nosso quintal.
Jacinto Guerra, ao longo de sua experiência intelectual
e profissional - como assessor político, no Ministério
da Justiça, ou em funções culturais e
administrativas - no Memorial JK, na Secretaria de Cultura
do Distrito Federal e na Prefeitura de Bom Despacho - sempre
demonstrou grande interesse pela história, pelas biografias,
pela memória pessoal e coletiva. Canalizando sua produção
literária para referendar o registro de episódios
marcantes da vida pública, particularmente a municipal,
dando ênfase ao registro de acontecimentos singulares
e à captura da memória, confere às suas
crônicas um viés distinto, que ultrapassa o simples
enfoque literário.
Em "Gente de Bom Despacho", o escritor mineiro-brasiliense
colheu depoimentos, valeu-se da lembrança de seus conterrâneos,
da experiência viva de quem contribuiu e vem colaborando
para elevar o nome de Bom Despacho e de sua gente ao justo
patamar da notoriedade. Mais que uma obra, "Gente de
Bom Despacho" é empreitada de fôlego, verdadeiro
trabalho de arqueologia, em que fatos relevantes, situações
pitorescas e momentos especiais vêm à tona nas
vozes dos seus verdadeiros protagonistas, enriquecidas por
informações da lavra do escritor, despertando
maior interesse no leitor, tanto pelo cunho informativo, quanto
pela remissão a episódios relevantes.
Na linha do que expressou Octávio Paz - " Se a
memória se dissolve, o homem também se dissolve
" - o autor de " Arraial da Senhora do Sol - História,
cultura e turismo em Bom Despacho " compreende que a
melhor história é aquela vivida e escrita pelo
seu povo - e não pelos historiadores, pois enquanto
aquele é o testemunho e autêntico titular da
vida em movimento, estes estudam e registram os acontecimentos
mais na visão do Príncipe, que representa o
poder, como aprendemos nas lições de Maquiavel.
E seu esforço para deixar gravada, com a dimensão
que merece, a memória de seu povo, eleva esse livro
à categoria de obra indispensável e de interesse
geral, pois não apenas oferece leitura aprazível,
mas impõe-se como fonte de consulta permanente. Certo
da importância para a atual e as novas gerações,
o autor deu à sua gente a oportunidade de revelar-se
e construir cada pedaço desse mosaico, que é
Gente - e de Bom Despacho.
Uma obra singular, referencial e imprescindível para
leitores, pesquisadores, estudantes e tantos quantos desejam
conhecer a memória e a história de Bom Despacho,
fluentes na sinceridade, no coloquialismo e nas comovidas
descrições dos narradores. Livros como este
dos que bebem água da Biquinha ajudam a melhor compreender
Minas Gerais e este país-continente, que é o
Brasil.
Ronaldo
Cagiano, mineiro de Cataguazes, é poeta, contista e
crítico literário, organizador das antologias
" O prazer da leitura " e " Poetas mineiros
em Brasília ", participou, em 1998, da III Feira
do Livro de Bom Despacho.
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