por
Mário Marcos de Morais, do livro Coqueiros &
Outras Histórias.
Bom
Despacho foi o início de uma nova vida, quase o despertar
de um pesadelo. A nova atividade profissional levou-me a ter
maior contato com outras pessoas, inclusive nos ambientes
familiares, libertou-me do sedentarismo que me impunha a profissão
de alfaiate. Em pouco tempo ampliei o universo de minhas relações
pessoais, comecei a conviver com pessoas de bom nível
intelectual e mentes arejadas. A nova comunidade pareceu-me
mais sensível e mais humanitária, sem nenhum
desapreço à querida Santo Antônio, minha
terra e de toda a minha família, em cuja necrópole
repousam meus pais, vários irmãos, outros familiares
e tantos amigos. O entusiasmo por Bom Despacho não
arrefeceu, portanto, o amor pelo meu berço, ao qual
me encontro vinculado por fortes e indissolúveis laços
sentimentais.
Viajante comercial, perdi o emprego em 29 de julho de 1944.
Nossas máquinas de costura, produzidas nos Estados
Unidos, não mais chegavam ao Brasil porque o governo
americano, em esforço total de guerra, transformara
as fábricas de máquinas Singer em unidades de
produção de aparelhos bélicos. Reduzindo
o número de vendedores, não fiquei entre os
remanescentes por não aceitar uma proposta de filiação
à maçonaria.
Buscando nova atividade para sobreviver, empreguei o dinheiro
da rescisão trabalhista em pequeno comércio
que não deu certo, provavelmente por me faltar experiência
e aptidão. Desempregado e sem dinheiro, debrucei sobre
livros e contabilidade, adquiri também algumas noções
de Direito Comercial e legislação fiscal. Ao
fim de algum tempo, recebi proposta para trabalhar em um escritório,
do qual me tornei chefe. Com o rendimento desse trabalho e
de emprego na Prefeitura, consegui tocar a vida e criar os
filhos que me foram aparecendo em intervalos médios
de pouco mais de 17 meses entre um e outro.
Envolvi-me com política e fui despedido da Prefeitura,
então em poder de adversários. O lado bom da
nova situação foi a minha volta a Santo Antônio
do Monte em fevereiro de 1956. Lá permaneci por quatorze
meses em agradável e proveitosa convivência com
familiares e numerosos amigos, tive também a felicidade
de adquirir um contemrrâneo especial na pessoa de meu
querido filho Paulo, nascido a 23 de julho de 1956. Transferi-me
para Belo Horizonte em abril de 1957, e em janeiro de 1958
fechei o ciclo das mudanças com o retorno definitivo
a Bom Despacho. Trabalhei por mais algum tempo na Prefeitura
e a partir de 5 de dezembro de 1961 me tornei gerente da Minascaixa
até a aposentadoria em 6 demarço de 1980.
Permita-me, porém, meu caro leitor, que por mais um
pouco de tempo eu esqueça a Bom Despacho de minha velhice.
Deixei-me soltar as asas da imaginação, evocar
a cidade onde um dia desembarquei, há mais de meio
século, para o início de uma nova vida. O imenso
retorno no tempo visa à narração de um
fato específico, objeto desse capítulo.
Conheci Irene e um ano depois estávamos casados. Dotada
de admirável formação moral e católica,
filiada à corporação religiosa "Filhas
de Maria", submissa e fiel aos regulamentos da entidade,
desde os primeiros encontros Irene percebeu logo minha animosidade
e aversão ao Clero e à Igreja. Com a peculiar
habilidade feminina, começou, então, a exercer
sobre meu espírito uma eficaz ação catequética,
procurando, antes de tudo, amainar um pouco esses sentimentos
de rebeldia.
Após o casamento, passei a acompanhá-la às
missas dominicais, mas um pouco desconfiado. Ficava sempre
próximo à porta de entrada, costumava arranjar
algum pretexto para retirar-me, ainda que por alguns momentos,
no decorrer da celebração.
Com o passar do tempo e sob sua influência e exemplos,
fui modificando minhas idéias e conduta religiosa.
Comecei a assistir regularmente às missas e outros
atos litúrgicos, chegando um dia, após muita
relutância íntima, a ajoelhar-me no confessionário
e relatar minhas misérias morais a um sacerdote, antes,
para mim, a suprema humilhação.
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