por
Pedro Rogério Moreira
*Jornalista
e escritor - pedrorog@senado.gov.br
Um
aviãozinho amarelo voava pelo reino encantado do Oeste
de Minas no tempo em que vestíamos calças curtas
e nos assombrávamos com as histórias da moça
bonita que o pilotava num céu azul-feliz. Na carenagem
do motor havia a inscrição: 'Cesarion'. A aviadora
arrebatava as emoções do mundo com as piruetas
que realizava tanto no ar quanto em terra. Lá em cima
ela desafiava a morte; aqui embaixo, suas acrobacias geravam
vidas. A primeira foi o Cesarion Praxedes, filho único
desta singular criatura chamada Maura Lopes Cançado,
gerado no desabrochar de sua intrépida existência,
na flor dos seus 16 anos de idade! As outras vidas foram os
seus livros audazes, absurdos, geniais.
O destino me pregou uma peça com Cesarion. Somos contemporâneos,
ele na sua terra natal, São Gonçalo do Abaeté,
o Pedrim em Bom Despacho e Belo Horizonte. O tempo passou,
aquele reino encantado ficou distante, mas nunca esquecidas
as suas felizes reinações. Só no Rio
de Janeiro, adultos, fomos nos conhecer. Conversamos sobre
tantas coisas, mas só muito depois fui descobrir que
Cesarion era o menino que deu o seu nome ao aviãozinho
da minha infância! O velho Aeronca Champion, cujo esqueleto,
eu cismei e por isso mesmo passou a ser verdade verdadeira,
era aquele que servia às minhas brincadeiras no campo
de aviação de Bom Despacho, nos primeiros anos
de 50.
Desde que mudei-me para Brasília, há vinte anos,
não via o Cesarion. Mas falávamos ao telefone.
Um dia fui lhe contar que a Princesa, personagem de meu romance
'Bela noite para voar', era sua mãe Maura Lopes Cançado.
'Olha, Cesarion', disse-lhe eu, cheio de dedos, 'no livro
a Maura vai namorar o presidente Juscelino Kubitschek, está
bem?' Respondeu-me: 'Trate-a com ternura'. E contou-me passagens
desconhecidas da vida sensacional, embora de grande sofrimento,
da sedutora e explosiva Maura, poeta, romancista, memorialista,
contista premiada de 1958 pelo Jornal do Brasil.
Maura, uma das mais inquietantes inteligências de sua
geração, e, por isso mesmo, desde cedo incompreendida,
o que certamente a levou aos paroxismos, esteve internada
muitas vezes; numa dessas internações, matou
uma paciente. Em 1993, morreu num hospital psiquiátrico
do Rio. Precisa urgentemente ser retirada do esquecimento
a que são relegados os loucos varridos. Nas antigas
fazendas de Minas havia isso: o quarto de doido. O corpo de
Maura continua num deles, junto com sua obra literária
audaciosa. Como também permanece no quarto de doido
outra menina que saiu de Minas para o Rio, antes de Maura,
e teve igualmente uma vida trepidante e infeliz: Dora Vivacqua,
nossa 'Luz del Fuego'. Vidas paralelas com conexões
que só Deus sabe! Essas meninas tinham mesmo de vir
de Minas...
Cesarion foi testemunha do sofrimento. O pai era o tenente
Jair, filho do eminente coronel Praxedes, um dos pró-homens
do antigo Bom Despacho. Jair deixou a Polícia Militar
e se tornou aviador. Praticava num táxi-aéreo
aquela aviação romântica que ainda sobrevive
no interior. Era tido como um ás no sertão do
São Francisco. Nos anos 60, num pouso de emergência,
no Abaeté, sacrificou sua vida para salvar a do menino
que o acompanhava. Belo final para um filme romântico
de aventura, como foi a vida de Jair, me disse o filho.
Agora, a vez de Cesarion. Tinha 58 anos, deixa um filho, César,
do casamento com a mulher que ele sempre amou, a jornalista
Míriam Lage. Sofreu uma hemorragia no esôfago
e acabou morrendo no hospital, no dia 7 passado. Ainda outro
dia mesmo nos falamos. Ele me contou, feliz, que resolvera
escrever um romance autobiográfico. Acumulara uma diversificada
experiência em sua carreira profissional. Sabia 'lidar
com as pretinhas', como classificávamos os bons redatores
no tempo das máquinas de escrever. No mesmo passo em
que desenvolveu sua intensa atividade de jornalista, especialmente
na revista Manchete, Jornal do Brasil e Rádio JB, Cesarion
trabalhou na Nuclebrás e em Furnas, transformando-se
num craque em energia nuclear. Era poeta publicado, denso
poeta.
Mais importante do que tudo isso, porém, é que
Cesarion Praxedes, mesmo tendo convivido pouco com o pai e
a mãe, jamais deixou de ser o menino cujo nome batizou
o aviãozinho de minha infância. Menino no pomar
disposto a ajudar aqueles que chegam para a comunhão
da manga-espada, da jabuticaba, do jambo. Pronto para estender
a mão amiga, como ele sempre estendeu, do alto da árvore,
aos pequenos que não conseguiam pegar o fruto desejado.
Cesarion foi encontrar-se com Maura e Jair no céu azul-feliz
daquele reino encantado que outrora povoou o Oeste de Minas
e que teima em morar em nossos corações e mentes.
Porque só a infância nos redime das besteiras
de adulto. O exagerado Nelson Rodrigues dizia que o homem
só é feliz até os 12 anos. Tá
bom. Mas se você ficar para sempre com essa idade será
feliz até à hora derradeira.
|