por
Tarcísio J. Martins
Seguindo
o exemplo de Carmo Gama, o monarquista Diogo de Vasconcelos
também resolveu trair o dever de fidelidade e fidedignidade
à História em seu livro “História
Antiga de Minas”, que publicou no mesmo ano 1904. Melhor
que comentar é transcrever a contrafação
lançada em nota de rodapé pelo autor:
“Os salteadores apreendiam ou compravam na África
tribos e nações inteiras, gente em vários
graus de sociabilidade, embora rudimentária e além
de muitos exemplos para prová-la, tivemos o que deu
lugar a legenda tão bizarra, quão verdadeiramente
poética do Xico Rei, que dominou Vila Rica. Esta figura
nobre de um preto, cuja vida acidentada aqui finalizou, imensa
luz derrama aos painéis daquela época sombria.
(19)” .
Eis a nota de rodapé nº(19):
“19 Francisco foi aprisionado com toda sua tribo, e
vendido com ela, incluindo sua mulher, filhos e súditos.
A mulher e todos os filhos morreram no mar, menos um. Vieram
os restantes para as minas de Ouro Preto. Resignado à
sorte, tida por costume na África, homem inteligente,
trabalhou e forrou o filho; ambos trabalharam e forraram um
compatrício; os três, um quarto, e assim por
diante até que, liberta a tribo, passaram a forrar
outros vizinhos da mesma nação. Formaram assim
em Vila Rica um Estado no Estado; Francisco era Rei, seu filho
o Príncipe, a nora a Princesa. Possuía o Rei
para a sua coletividade a mina riquíssima da Encardideira
ou Palácio Velho. Antecipou-se este negro a era das
cooperativas, e precursou o socialismo cristão. Como
naquele tempo toda irmandade estava unida à idéia
religiosa de um santo patrono, tomou esta o patronato de Santa
Efigênia, cuja intercessão foi-lhes tão
útil; e desse exemplo nasceu o culto ardente, que se
volta ainda à milagrosa imagem do Alto da Cruz. Os
irmãos erigiram um belo templo que existe sob a invocação
do Rosário. No dia 6 de janeiro o Rei, a Rainha e os
Príncipes vestidos como tais eram conduzidos em ruidosas
festas africanas à igreja para assistirem à
missa cantada e depois percorriam em danças características,
tocando instrumentos músicos indígenas da África,
pelas ruas. Era o Reinado do Rosário, festas que se
imitaram em todos os povoados das Minas. Vem também
daí a nomenclatura dos mesários do Rosário
em todas as irmandades de pretos entre nós. No Alto
da Cruz ainda se vê a pia de pedra na qual as negras
empoadas de ouro lavavam a cabeça para deixá-lo
naquele dia por esmola ou donativo”.
Voltando ao texto, o descendente daquele outro Diogo que vilipendiou
os restos mortais de Tiradentes arremata a contrafação:
“A legenda do rei africano é na história
semelhante a um oásis florido e suave, em que descansamos
deste melancólico arneiro, que sua raça infeliz
encharcou de suor, de sangue e de lágrimas, (...)”
e, assim, muda de assunto e NADA MAIS fala sobre o tal “Xico
Rei”.
Como se vê acima, Diogo de Vasconcelos confundiu reisado
(festa dos reis magos, em 6 de janeiro), com reinado, festa
de Nossa Senhora do Rosário, celebrada na primeira
ou segunda semana de agosto que, hoje, para possibilitar o
acesso dos mineiros que vivem fora de suas cidades, foi transferida
para final de julho de cada ano. O erro de Diogo é
grave, uma vez que as festas de Santos Reis, celebradas em
06 de janeiro, só se firmaram a partir do final do
século XIX, inexistindo notícias das mesmas
nos anos setecentos. Ora, como poderia um autor que faz confusão
entre a data da festa de Santos Reis e a data da festa de
Nossa Senhora do Rosário, guardar tão bem e
se lembrar de tantos detalhes da alegada tradição
ouropretana sobre o tal Chico Rei?
Diogo fala da tal “legenda” como se ela fosse
pública e notória. No entanto, nunca encontrei
ninguém – nem mesmo de Ouro Preto – que
tivesse dela tomado conhecimento, a não ser - direta
ou indiretamente - pela falsa notícia que o acadêmico
piadista da Faculdade de Direito de São Paulo inculcou
no seu livro “História Antiga de Minas”.
Por exemplo, inexiste até mesmo qualquer depoimento
de contemporâneos que pudesse dar alguma credibilidade
às alegações do autor. Diogo, como se
sabe, era um tremendo gozador; talvez sua intenção
tenha mesmo sido a de nos fazer a todos de “marrecos”
.
A nota de rodapé do monarquista frustrado fez enorme
estrago em nossa historiografia. Dezenas de autores de respeito,
pensando que – também nesse caso – Diogo
merecesse respeito, reproduziram sua nota de rodapé
em livros e mais livros.
Em 1966, o ROMANCISTA Agripa de Vasconcelos veio a publicar
pela Editora Itatiaia o seu livro “Chico Rei”,
de 247 páginas. Diferentemente de seus outros romances-históricos,
neste, Agripa não menciona qualquer bibliografia e
a única referência que faz é mesmo à
nota de rodapé do Diogo de Vasconcelos. É, sem
dúvida, mera ficção que teve como base
a nota de rodapé do Diogo, segundo consta, seu ancestral
colateral.
Muita gente tem chamado Agripa de Historiador, quando ele
mesmo sempre se disse apenas um romancista.
A desinformação se multiplicou. Livros e mais
livros foram escritos reproduzindo a falsa lenda. “Chico
Rei” virou tema de escola de samba, virou filme; o comércio
de Ouro Preto passou, sem saber que o faz, a enganar turistas
e a si mesmos, na medida em que deram evidências e corpo
a uma falsa história que também nunca foi lenda.
O próprio Instituto Histórico e Geográfico
de Minas Gerais, sob a gestão de seu presidente Miguel
Augusto Gonçalves de Souza , na edição
comemorativa de 22 de abril de 2000 de sua Revista (Brasil
– 500 anos), Vol. nº XXIII, fez publicar o artigo
do confrade Rogério de Alvarenga , intitulado “Um
Escravo Rei”, que sustenta falsa fidedignidade HISTÓRICA
no ROMANCE de Agripa e nas citações que outros
quatro autores fizeram da nota de rodapé do Diogo de
Vasconcelos.
Em 20.05.98 tivéramos também uma reportagem
na Revista “ISTO É” , onde um repórter,
através de um historiador local – que tinha como
fonte principal o livro do Agripa de Vasconcelos - disse ter
econtrado, em Pontinha-MG, nada mais nada menos, que os descendentes
de Muzinga, o filho do Chico Rei. Mandei dezenas de correios
eletrônicos para essa revista, mas ela nunca respondeu
nada. Essa reportagem, a meu ver, visava apenas a excluir
os negros locais dos favorecimentos legais que teriam –
na posse das terras onde moravam - caso fossem remanescentes
de quilombos. E era mesmo! E eles, os negros, perderam.
Tenho convicção de que a “criação”
do Chico Rei visou não só esconder o Rei Ambrósio,
personagem REAL da História de Minas, mas também,
criar para os negros um exemplo de que, negro, para “dar
certo”, precisa ser muito humilde e obedecer as sábias
regras do jogo, criadas e impostas pelo branco.
Sobre a História da Irmandade do Rosário e suas
festas em Bom Despacho e Moema, leia o livro “Moema”,
clique aqui e saiba mais.
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